“A CRIATIVIDADE E O CHORO PARA NÃO VIRAR COMIDA“
“O melhor fruto que dela se pode tirar...”, frase de Pero Vaz de Caminha.
Com a chegada dos portugueses, inicia-se no Brasil um processo total de aniquilação cultural dos povos indígenas: a destruição de parte de todas as etnias, que na época chegava quase a cem. A primeira ação dos visitantes, no ano 1500, foi escrever ao rei de Portugal, por meio de Pero Vaz de Caminha, falando da “maravilhosa descoberta”. “O melhor fruto que dela se pode tirar, será salvar esta gente [os índios].” O escritor português estava se referindo aos índios, com os quais a caravela de Pedro Álvares Cabral, o descobridor, já havia tido contato. O destaque para esta frase da carta de Caminha é por que foi justamente o que não ocorreu.
Nos séc. XV e XVI o confronto índio/visitante é mais intenso, com a participação de outros estrangeiros, além dos portugueses, provocando reações inusitadas e abomináveis entre índios e invasor. E neste ponto fica evidente o traço cultural de dois povos: índios e europeus. Estes a princípio chegaram a pensar nos índios como uma espécie de animal e depois da comprovação de que algumas etnias comiam realmente outro ser humano (o “homem branco” e índios de tribos inimigas) no consciente de alguns a constatação serviu para justificar as atrocidades generalizadas aos nativos “incivilizados”.
Os europeus, cientes de que eram civilizados, na condição de vítima surrupiaram, escravizaram e usaram de todos os meios de exploração por interesses políticos, religiosos, se intitulando pertencentes a uma ordem “sociologicamente normal”.
Massacrada e dizimada aos poucos, até os dias atuais, a nação indígena conviveu com os visitantes e fez parte do início do processo de miscigenação que relata a História lá, em 1500. Dos visitantes, destaca-se a história do alemão Hans Staden, que chegou a ser engordado para ser comido por uma das tribos antropófaga e fez um livro do ocorrido.
Protagonistas deste ensaio, índios e estrangeiros são vítimas e agressores. A população indígena estava em situação de defesa e a européia, imbuída pelo espírito desbravador, na de ataque. Há momentos que o antagonismo desta assertiva confunde as palavras antônimas ataque e defesa.
A AMEAÇA CONSTANTE DOS TUPINAMBÁS
O alemão torna-se prisioneiro dos tupinambás, inimigos dos portugueses, para quem ele trabalhava.
A abordagem começa com experiências a partir do ano de 1548, quando o alemão Hans Staden chegou ao Brasil. Nesse momento da história, os índios tupinambás tinham como aliados os franceses, enquanto que os portugueses, desde o 1º contato com os índios, tiveram aproximação com outras etnias, como os maracayás que tinha como prática, também, a antropofagia.
Hans Staden chegou por Pernambuco (Paranam-buca, procedência Tupi), no período em que o país era visto pelos europeus como um grande arquipélago para exploração, por causa do pau-brasil. Staden conhecia o Tupi e no livro faz explicações de alguns termos. E talvez não tivesse um conhecimento aprofundado da língua, pois suas colocações recebem correções do Editor. O livro do alemão é interessante. Em sua abertura, conta como conseguiu a impressão (se hoje é difícil, imagine há 500 anos). Insiste diversas vezes que a revelação é estupenda e verídica e não foi criada por sua imaginação. Percebe-se uma preocupação em não ser ridicularizado por autoridades da época e que foi muito importante para ele tornar público seu sofrimento. Ainda mais o fato de ter saído com vida e ter presenciado outros humanos sendo comidos.
Sua história começa mesmo a partir de 1549, quando voltou ao Brasil, por Santa Catarina, onde já existia um porto com o nome Jurumirim (nome dado pelos índios carijós, habitantes da região). Antes de ser capturado por tupinambás, inimigos dos portugueses e para quem ele trabalhava, viajou em canoas indígenas, sofreu naufrágio, passou apertos, onde teve que comer lagartos, ratos do campo e outros animais esquisitos, como relata. Hans Staden era responsável pela casa das armas, no Forte de Bertioga, sob controle lusitano.
A maioria dos índios que habitava o litoral falava o Tupi. Citando alguns, os guayanãs, nas serras baianas, vindo para o lado do Rio, tamoyos, tupinikins carijós e maracayás. Quando foi preso, Staden estava na mata e se viu surpreendido por uma grande algazarra (que era normal entre os índios); foi cercado e imediatamente despido; bastante esbofeteado levado nu, em canoas. Os índios começaram a disputar sua captura e mais tarde lhe deram a outros em forma de pagamento, sempre sob a ameaça de ser comido. Ao ser pego, Hans diz no livro que chorou muito e cantou salmos. Ferido na perna, ficou por muito tempo amarrado e os índios falavam muito e o assustavam, insistindo que iriam comê-lo. Sua captura foi na Ilha de São Vicente.
“Che remimbab ndê”, quer dizer, tu, meu bicho de criação. A frase significava, segundo o Editor, que o prisioneiro, dali em diante era bicho de criação e lhes pertenciam. Staden relata que remaram com ele por uns três dias, até chegar as terras tupinambás, no litoral paulista e carioca. Em companhia com os “selvagens”, diz ter entrado no Rio Paraíba (paraibe), quando os acompanhou à guerra. Na viagem de sua captura, chovia e ventava muito, e isso assustava os índios, que disseram: “Ne monghetá ndê Tupan quaabe amanaçu yandê eima rana mocecy”, entendido pelo alemão e confirmado e corrigido pelo Editor como “pede a teu Deus que aquela tempestade não nos faça mal”. Amarrado ao fundo da barca, o medo o fez rezar e minutos depois ouvia seus agressores, menos assustados, dizer que a tempestade tinha passado.
É na verdade a primeira ação, ainda que inconsciente, feita por Staden, com um bom resultado. Assim como os “selvagens”, ele acreditou que seu Deus tinha ouvido suas orações. A oração passou a ser sua arma a partir de então, aliada a uma criatividade não tão consciente, mas por conseqüência grande do temor.
Os fenômenos naturais passam a ter um valor muito maior para o estrangeiro e o conceito de Deus todo poderoso, do “deus do homem branco” vai se consolidando. Staden tem total liberdade na tribo, onde convive por oito meses, solto entre os índios, vivendo seu cotidiano, participando de suas atividades, tendo inclusive oportunidades de fuga.
OS ÍNDIOS BRASILEIROS COMIAM MESMO GENTE
Não se dizia a um desafeto: “vou te comer”, mas “quebro-te a cabeça”
Os índios brasileiros comiam literalmente a carne de outros homens (índios ou não). É o que mais causava pavor e abominação aos europeus da época. Tal fato, que na realidade foi presenciado e discutido por diversos estudiosos e ainda o é, tanto de brasileiros como de estrangeiros, representava na verdade um extrato da cultura indígena da época. Para os tupinambás, mais importante que comer “seu semelhante”, era quebrar seu crânio, principalmente dos prisioneiros. A grande honra, como destaca Staden, “era prender e matar muitos inimigos”.
Segue o destaque, na íntegra, de um trecho curioso de seu livro:
“Comnosco vinha um menino (índio), que trazia uma canella do prisioneiro e nella havia ainda carne que elle comia. Eu disse ao menino que ditasse fora o osso. Zangaram-se então todos commigo e me disseram que isto é que era a sua verdadeira comida”. No relato do livro VIAGEM AO BRASIL, o editor mantém alguns termos, inclusive palavras da língua na época, com activo, assúcar, portuguezes, quizeram e formas de tratamentos da época.
No texto Manuela L. Carneiro de Cunha e de Viveiros de Castro, Vingança e Temporalidade, a questão vivenciada por Staden é abordada por um outro contexto. A quebra dos crânios é analisada com mais ênfase que a antropofagia. Não se dizia a um desafeto: “vou-te comer”, mas “quebro-te a cabeça”. Os autores fazem a observação baseado em texto, principalmente, de Jean de Léry e de outros.
Por sua vez, Staden, que presenciou por diversas vezes índios se alimentando de carne humana, menciona o fato da quebra de crânios com menos ênfase. O canibalismo é o que o assusta e é mencionado várias vezes, com riqueza de detalhes. Às crianças, velhos e caciques eram dados braços, perna e até vísceras, assados. E notável, porém, que a convivência por quase um ano na tribo, participando de pescarias, festas, comemorações e até em guerras, dá um alento ao alemão. Chegaram até lhe dar um índio carijó (capturado de tribo inimiga) como escravo.
Hans Staden escreveu oração, teve oportunidades de fuga, viveu o cotidiano dos índios, teve conferências com o cacique. Por um momento, pode ter visto a prática, apesar de abominá-la, como normal. Obviamente, sem a visão sociológica de cultura. O fato é que o alemão, depois de negociações entre os europeus e os índios conseguiu sua liberdade, tanto que relatou com detalhes tudo que aconteceu.
Vale à pena ler seu livro e outros que tratam do assunto.
Abaixo segue uma bibliografia.
Bibliografia
STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. Coleção Afrânio Peixoto, da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 1988.
SOUZA, Irene Sales. Dicionário de Psicologia Prática. Prática de Psicologia Moderna. Ed. Esparca,. Rio de Janeiro, 1988 – vol. 1.
MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo e a terra de Santa Cruz, São Paulo: Companhia das Letras, 1986, pp. 49-85.
DE LÉRY, Jean. Viagem à Terra do Brasil, São Paulo: Martins, 1941, pp-183-204.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo & CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. “Vingança e Temporalidade: os Tupinambás”, Anuário Antropológico 85, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986, pp-57-78.
Texto de trabalho de Licenciatura do editor do Blog, Mauro Cesar -