Era uma manhã, tipo sexta-feira santa: silenciosa, céu embruscado, ar parado, com muita gente com “cara de jejum”, propagando aos cochichos que alguma coisa de grave estava para acontecer. Mas, não deixava de ser uma manhã e a execução já estava marcada.
Em quase todas as igrejas da localidade, o padre já havia feito a “encomendação” do corpo, ainda com vida, no catre. Não deixando de acrescentar, por entre as orações decoradas, que o pobre diabo era mais um subversivo que tinham suas ações descobertas e interrompidas. Pobre infeliz! As beatas, sem serviços, que amanheciam na igreja de véu na cabeça, balaçavam-na com os olhos de “peixe-morto”, apoiando o sermão do pároco. Mais tarde, lá fora, aos ouvidos das companheiras de ladainha, iriam comentar que o padre fora bastante duro nas suas afirmações.
A cidade toda, apreensiva, dava lugar em suas ruas aos comentários sobre o quê, iminentemente, estava para acontecer. Não haveria prerrogativas, nem perdão, a sentença já estava pronunciada.
Na barbearia da rua principal o movimento era normal, mas se fazia presente um homem que naquele dia sentia-se diferente de todos os outros. O tempo todo em que o profissional aparou-lhe a barba, manteve-se distante e desligado de toda a conversa como se estivesse em transe, remoendo algum pensamento doentio. Para ele o assunto tão comentado não lhe dizia nada: ou, dizia muito. Se o barbeiro, Sr. Edimundo Vidigal, fosse um homem de maior tato teria percebido, ao receber as moedas do silencioso freguês, que este ficaria visivelmente pálido quando outro homem indagou sobre quem seria o carrasco do condenado. O tal freguês encarou-se no espelho, alisou o rosto barbeado e, já recuperado da cor, com um agradecimento seco, retirou-se do estabelecimento.
Na rua o vento forte esparramava as folhas secas do outono, enchendo aquele homem recém-barbeado de uma melancolia quase louca. Sentia uma coisa estranha esparramar fragmentos de angústia por todo seu ser. Pela primeira vez experimentava a força de seus pensamentos, balanceando toda sua conduta. Sentia-se perdido, indeciso, preocupado. Não via razões para usar o capuz, chutar a banqueta e aguardar o grito assombroso e sádico da multidão. Ele, que nunca questionara a razão, se via agora indistintamente incapaz de fazer o que sempre fizera com tanta naturalidade. Não, naquele dia! Não, com aquele homem! A admiração pelo condenado, talvez, pudesse até ser eliminada, se não fosse naquele dia. Seguiu angustiante para o local de execução sentindo os músculos trêmulos e os lábios ressequidos.
A multidão, sem disfarçar sua impaciência doentia, fez um silêncio quase fúnebre quando os três homens caminharam em direção ao palanque de execução. A atenção era toda para o homem do centro: cabelos e barba longos, olhar penetrante e uma bata de um branco encardido tocando os pés. Trazia um rosto impassível, a cabeça erguida e os gestos firmes. Não parecia um réu acompanhado por dois guardas, mas um grande líder, imponente, entre dois “seguranças”, caminhado seguro para uma retórica.
Quando os pés descalços e pesados daquele homem galgaram as taboas do palanque, outro que o aguardava encoberto por um capuz, não pode deixar de sentir um calafrio lhe correr o corpo todo.
Foi tudo tão rápido como a cena de um filme, o ato de uma boa peça, uma injeção indolor.
Suas mãos tremeram muito ao laçar aquele pescoço semi-oculto pela barba e pelo longo cabelo.
Aquele olhar profundo, sem revolta, transbordando serenidade, como se compreendesse toda sua angústia, lhe penetrou fundo como se quisesse arrancar o capuz para dizer um ultimo adeus ao seu rosto suado e nervoso.
Não esqueceria nunca aqueles olhos, aquele homem!
À noite, na simplicidade de sua casa, um bolo caseiro sobre a mesa ostentava uma velinha de um ano. Não conseguiu ficar alegre entre aquelas crianças sorridentes e felizes que ali estavam para comemorar o primeiro ano de seu filho, Joaquim José.
Eram os olhos de seu menino. Era uma porção de pares de olhos iguais ao do homem enforcado a olhar impaciente para o bolo. Olhos de crianças, ingênuas, puros, brilhantes, repletos de esperança, cheios de liberdade como os de Tiradentes. Olhos de crianças a aguardar uma fatia de bolo.
A aguardar o momento de serem adultas, para gozarem a liberdade. Olhos de felicidade!
Seria duro, cada ano, exatamente em 21 de abril, comemorar o aniversário daquela criança.
AQUELA CRIANÇA TÃO LOUCA POR LIBERDADE!
Conto de Mauro César, escrito no final da década de 1980 (Curso de Jornalismo - UBM)
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