04 abril, 2010

E A VIDA PROSSEGUE

As simples coisas fazem lembrar. O chinelo, as obras e as roupas. A planta e o mato alto. O isqueiro, o cheiro da casa as lembranças dos outros que o conheceram. Não tem como voltar o relógio do tempo, nem querer viver as companhias vividas. Tudo é só saudade, lembranças e pensamentos. Agora, a esperança mais tênue e o sonho do convívio mais claro na mente. As conversas onde as pessoas falam e relembram um fato vivido.
Faz um mês e a cicatriz aberta nem ameaça fechar-se. Só mesmo o amargor daquele 3 de Março, encravado no tempo, que o cérebro vez por outra esquece, proporciona a ilusão de um conforto. Estar com os parentes e os amigos faz bem e a família, unida na luta diária, é o conforto mais próximo. E a vida prossegue.
Um texto aqui, um outro ali, serve como consolo e vem mostrar que a dor e a saudade chegam para todos que perderam um parente ou amigo. Foi pensando assim, que este artigo com o título Novas Flores, da escritora Heloisa Seixas, coube bem aqui, e é confortável compartilhar, salvaguardando os justos direitos autorais. Parabéns! Belo artigo.

Novas Flores, por Heloisa Seixas

Os flamboyants estão floridos. Desabrocharam mais cedo este ano, talvez por causa do calor, esse calor fora do comum que envolveu o Rio desde o começo do verão, como um alerta de perigos futuros para o planeta. Desde janeiro, tenho observado as árvores em torno da Lagoa, a beleza de suas folhas filigranadas, cujo verde vai desaparecendo e dando lugar às flores de um vermelho quase laranja.
Agora sempre presto atenção à floração dos flamboyants e isso tem um motivo: há exatamente um ano, quando eles floriram em março, eu pensei em você. Pensei em como você estava sozinha, inerte no quarto azulado, naquele ambiente frio,
asséptico, cheio de máquinas e fios, sem poder ver a cidade e suas flores, o mar que tanto amava, as montanhas, tudo. Os flamboyants estão florindo e você não pode ver, foi o pensamento que me veio ao dirigir pela Lagoa naquele outro março, a caminho do hospital em Copacabana.
Hoje, um ano depois, as árvores da Lagoa recomeçaram sua floração – e você não está mais aqui. Nunca mais estará, para ver os flamboyants em flor, o mar do Leme, o pontal de pedra com os pescadores ao entardecer – nunca mais.
A vida vai continuar sem você, e a natureza seguirá pondo sóis, desabrochando flores e quebrando ondas, indiferente à ausência de um par de olhos líquidos que a observavam com tanto amor. Parece injusto, mas o que fazer? A vida é assim mesmo, diria o velho clichê. A morte é assim mesmo.
Sempre falo de um conto que me impressionou e que li ao acaso numa revista americana. Por distração, não guardei o nome do conto nem do autor – e jamais pude relê-lo. Mas ele permaneceu em mim. A história falava de um mundo dos mortos, um mundo igual a este em que vivemos, com casas, supermercados, ruas, tudo, apenas com uma diferença: nele, as pessoas desapareciam de repente, como se fossem uma bolha de sabão estourando no ar. E isso só acontecia, esse desaparecimento súbito, quando no mundo dos vivos não restasse mais ninguém para se lembrar delas.
Naquela ocasião, ao acabar de ler o conto, eu me perguntei se não seria mesmo assim. Isso explicaria o impulso que todos nós temos, de uma maneira ou de outra, de deixar rastros em nossa passagem pela Terra. Tudo o que escrevemos,
pintamos, tocamos, fazemos, dizemos traz a intenção de deixar uma semente qualquer, de permanecer. De ser lembrado, de não ser apagado, de não se dissolver no ar como uma bolha que estoura. Essa ideia é um alento para nós, escritores. Quem sabe um dia, daqui a muito tempo, quando eu estiver quase apagando, quase desaparecendo naquele outro mundo, alguém lerá algo que escrevi e pensará em mim? Imediatamente, então, meu corpo-espírito tornará a ganhar substância e cor – pensei.
Hoje, o conto me volta à memória, enquanto olho a beleza do Rio neste fim de verão e penso em você. Se acaso estiver num lugar assim, num mundo como o daquela história, fique tranquila, minha amiga – pelo menos enquanto eu continuar aqui. Porque, toda vez que passar por um flamboyant em flor, vou me lembrar de você.
Extraído da Revista Seleções Reader's Digest - Edição Março/2010 -

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