Quando terminei minha licenciatura em História, em 2007, uma certeza eu tinha: Eric Hobsbawm é o historiador do Século XX. Aos 90 e poucos anos ainda produzia muito e recentemente tinha lido uma entrevista sua em o Globo. Invejava sua capacidade, eu, um simples estudante. Há anos luz distante da sua trajetória.
Esta semana "a maior referência da História viva, que eu tinha, morreu. Senti uma nostalgia e lamentei muito.
Resolvi deixar aqui alguma coisa registrada; não pelos meus próprios meios. Por isso, trago hoje a reportagem feita pelo o Globo e comentada no Observatório da Imprensa.
ERIC HOBSBAWM - O HISTORIADOR DO SÉCULO XX
O legado do intelectual marxista que conquistou leitores de esquerda e de direita
Na segunda metade dos anos 1930, quando Eric Hobsbawm era bolsista em
Cambridge, uma pergunta circulava entre seus amigos comunistas da
universidade britânica: “Existe algo que Hobsbawm não saiba?” Havia
algumas coisas. Talvez a principal delas era que a crise da década de
1930 não seria a crise final do capitalismo. “Achávamos que seria, mas
não foi”, escreveu o historiador marxista 40 anos depois, ainda filiado
ao Partido Comunista, ao qual foi vinculado até sua extinção, em 1989.
Ironicamente, foi após o fim do comunismo que Hobsbawm – que nunca se
fechara entre seus pares na academia – ganhou ainda mais relevância como
intelectual público na Inglaterra. E nas últimas duas décadas, o
britânico, que certa vez se definira como um historiador do século XIX,
reforçou publicamente a relação entre sua vida e seus escritos, em
grande parte dedicados aos acontecimentos do século XX – muitos dos
quais ele, nascido em Alexandria, no Egito, em 1917, ano da Revolução
Russa, acompanhou de perto.
“Cada historiador tem sua posição, a partir da qual observa o mundo. A
minha está construída, entre outros materiais, por uma infância na Viena
dos anos 1920, pelos anos da ascensão de Hitler em Berlim, que
definiram minhas ideias políticas e meu interesse pela História, e pela
Inglaterra, especialmente a Cambridge dos anos 1930”, disse ele em
Creighton, em 1993.
Se foi nos anos em Berlim que o adolescente Hobsbawm leu Marx pela
primeira vez, foi a Grã-Bretanha que lhe deu o material inicial para sua
pesquisa acadêmica, a partir da Revolução Industrial e de movimentos
sociais do século XIX, e sua vida política, com o apoio ao Partido
Trabalhista – do qual se tornou uma espécie de guru nos anos 1980, e que
seria objeto de suas críticas.
Mais do que a Inglaterra, a história da Europa foi objeto da grande
pesquisa de Hobsbawm, como atestam seus quatro volumes sobre os séculos
XIX e XX: “A era das revoluções”, “A era do capital”, “A era dos
Impérios” – os três publicados no Brasil pela Paz e Terra – e “A era dos
extremos”, um dos livros mais pessoais de Hobsbawm, que viveu a maior
parte do “breve século XX”. Editado pela Companhia das Letras, este
livro teve 227 mil exemplares vendidos no país – onde Hobsbawm
participou, em 2003, da primeira Festa Literária Internacional de
Paraty.
Vínculo com a classe operária britânica
Filho de pai britânico e mãe austríaca, Hobsbawm cresceu em Viena e,
após a morte dos pais, judeus, mudou-se para Berlim com a irmã, Nancy,
indo viver com um tio. Em 1933, depois que Hitler assumiu o poder na
Alemanha, o tio levou os dois sobrinhos para Londres. Durante a Segunda
Guerra Mundial, o historiador se ofereceu para colaborar com a
inteligência britânica, mas foi recusado por sua filiação ao Partido
Comunista, e por fim ajudou na construção de defesas da Costa Leste: “A
experiência em tempos de guerra me ligou para sempre à classe operária
britânica.”
A fidelidade de Hobsbawm ao Partido Comunista, que permaneceu mesmo
durante a invasão da União Soviética à Hungria, em 1956, foi alvo de
críticas de intelectuais. Apesar de manter a convicção comunista,
Hobsbawm não poupou críticas ao regime soviético. E conquistou leitores
de esquerda e de direita pela rara união de pesquisa profunda e
linguagem fluente, de poder de síntese e atenção aos detalhes.
Em junho, Hobsbawm comemorou seu 95º aniversário em um jantar com
historiadores como Peter Hennessy, e recebeu cumprimentos de Giorgio
Napolitano e Luiz Inácio Lula da Silva – ex-presidentes de Itália e
Brasil, dois dos países onde tem mais leitores.
– Ele foi um ídolo dessa geração que chegou ao poder – diz Luiz
Schwarcz, editor da Companhia das Letras, lembrando a admiração de outro
ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso, pela obra do historiador. –
Com a morte dele, perdemos essa visão marxista mais aberta, esse olhar
arguto que formou tantas pessoas.
O Instituto Lula divulgou em seu site uma mensagem do ex-presidente
para a viúva de Hobsbawm, na qual ele lamenta a morte do “querido amigo,
um dos mais lúcidos, brilhantes e corajosos intelectuais do século XX”.
Marcus Gasparian, editor da Paz e Terra, casa que começou a publicar a
obra de Hobsbawm no Brasil em 1975, conta que, mesmo com o ritmo menor
dos compromissos públicos, Hobsbawm não recusava convites de sindicatos:
– Em 1990, acho, ele recebeu convite para falar em uma universidade de
São Paulo e avisei que ele não iria. No mesmo dia, um sindicato de São
Bernardo ligou convidando-o para falar no dia seguinte. E ele aceitou!
O historiador morreu na madrugada de ontem no Royal Free Hospital de
Hampstead, na Inglaterra, de pneumonia. Ele deixa a mulher, Marlene, os
filhos Julia, Andrew e Joss, além de sete netos e um bisneto.
ERIC HOBSBAWM (1917-2012) - A era da coerência
Por Maurício Parada em 03/10/2012 na edição 714 -0 Reproduzido de
O Globo, 2/10/2012
Eric Hobsbawm morreu aos 95 como o mais respeitado historiador
britânico do último século. Marxista desde jovem, teve sua obra
reconhecida e discutida por intelectuais de todas as matrizes
ideológicas. No Brasil, suas obras marcaram gerações de historiadores e
leitores interessados nos séculos XIX e XX nas últimas quatro décadas. O
reconhecimento de sua obra não se deveu a oscilações de ideias ou
negações de princípios, ao contrário, seus livros se sustentam por uma
consistente forma de ver e ler seu próprio tempo e uma monumental
erudição. Hobsbawm deu aos leitores um vasto e meticuloso painel
histórico sem abandonar seu lugar político de historiador marxista.
Essas qualidades eram tão importantes para os britânicos vivendo o duro
período Thatcher como para os jovens historiadores brasileiros se
formando nos anos finais da ditadura.
Com o início da Segunda Guerra Mundial, Hobsbawm envolveu-se no esforço
de guerra inglês ajudando a construir as defesas contra a possível
invasão alemã. Em 1943, se casa com Muriel Seaman. Após a guerra, volta a
Cambridge e passa a estudar os movimentos políticos e operários do
século XIX. Em 1947, conseguiu seu primeiro emprego efetivo, como
professor de história no Birkbeck College, em Londres, onde permaneceu
grande parte da vida.
Os intelectuais britânicos de sua geração foram membros efetivos do
Partido Comunista Britânico (PCGB). Sua principal questão era combater
uma leitura simplista e mecânica dos escritos de Marx e Engels. Essa
geração, da qual podemos citar E.P. Thompson, Raymond Williams e
Christopher Hill, procuravam ligar a teoria marxista com a prática
política. Sua grande contribuição foi dirigida a escrever a história do
ponto de vista do povo, revivendo as tradições de radicalismo que
haviam, ao longo do tempo, desafiado a ordem estabelecida. A crise
gerada pelo XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, no
qual foram denunciados os crimes do stalinismo, levou ao rompimento de
muitos intelectuais com o partido.
A crise do marxismo europeu da década de 1950 deu origem, na
Inglaterra, ao movimento que se auto-intitulou Nova Esquerda (New Left).
Embora Hobsbawm não fizesse propriamente parte do movimento, sendo por
vezes crítico em relação a ele, intelectualmente compartilhava de várias
de suas premissas. Uma delas é a do diálogo com outras tradições do
marxismo. Hobsbawm buscou afastar o marxismo do pensamento determinista.
Suas obras mais influentes foram a tetralogia sobre os séculos XIX e
XX, a obra sobre o jazz e "A invenção das tradições", organizada com
Terence Ranger. Coerente com sua história, Hobsbawm definiu a cronologia
do século XX como o "breve século", associando-o ao momento político do
socialismo. Até seus últimos momentos foi um crítico firme e sereno do
tempo presente e sua história pessoal se confunde com a do século em que
viveu.